A cada 10 municípios, sete não incluem essa temática no currículo
A mais recente série de ataques racistas ao jogador Vinícius Júnior, do Real Madrid, durante partida do campeonato espanhol no último dia 21, reacendeu um debate sobre a realidade com a qual convive boa parte das 56,1% pessoas que se declaram negras no Brasil.
Apenas em São Paulo, os casos de discriminação racial registrados pela Secretaria de Justiça e Cidadania do estado, no 1º semestre de 2022, superaram o total dos dois anos anteriores. Nos seis primeiros meses de 2022 foram registradas 265 denúncias, número maior do que em 2019 e 2021, com 251 situações desse tipo.
Em março deste ano, uma pesquisa feita pela consultoria Trilhas de Impacto apontou que 86% das mulheres negras já sofreram racismo nas empresas em que trabalham.
Números para comprovar a discriminação racial como um dos pilares estruturantes da sociedade brasileira não faltam, mas como combater essa ações?
Lideranças ouvidas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) destacam que uma das medidas fundamentais é a aplicação da Lei Federal 10.639, que completa 20 anos em 2023, e obriga o ensino sobre História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas públicas e particulares no país.
Porém, uma pesquisa dos Institutos Alana e Geledés de maio deste ano apontou que 71% das mais de mil secretarias de educação no país não possuem qualquer programa ou apenas desenvolvem projetos esporádicos sobre o tema.
A postura, defende a secretária de Combate ao Racismo da Central Única dos Trabalhadores (CUT), professora e diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Anatalina Lourenço, reflete a tentativa de perpetuar a lógica de opressão aos negros ne negras na sociedade brasileira.
“A lei não propõe apenas a alteração do currículo, mas também uma mudança conceitual e comportamental. As cidades não aplicam a lei porque não têm comprometimento em fazer o enfrentamento a esse problema. Se o racismo é um sistema ideológico que trabalha na lógica de manter a exclusão, quem coopera com esse princípio também vai permanecer no processo de exclusão e operar com políticas excludentes”, avalia.
O que diz a medida
A Lei 10.639 foi criada em 2003 durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para resgatar e valorizar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política. Entre os pontos, a medida especifica que as aulas devem abordar assuntos como história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o papel da população negra na formação da sociedade nacional.
Mas para a supervisora escolar e mestranda da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), Elisabeth de Sousa, sem mecanismos que cobrem das secretarias o cumprimento da legislação, o cenário se manterá o mesmo.
Ela acredita que as pastas, em geral, não se preocupam em como o racismo impacta na aprendizagem de alunos negros e negras e voltam suas atenções a questões genéricas de aprendizagem.
“Como não há meta a ser cumprida, como ocorre no caso de disciplinas como português e matemática, as secretarias municipais e estaduais não cumprem a lei e também não há verba específica para desenvolver ações nesse campo. Assim, de um lado, temos a resistência racista e de outro, a falta de estímulo para que as coisas aconteçam”, explica.
De acordo com Elisabeth, o fato de a população pobre brasileira, e majoritariamente negra, ser vista em um lugar de serventia faz com que a alteração nos parâmetros educacionais não seja prioridade. Principalmente quando a gestão da educação está nas mãos de pessoas brancas.
Além disso, acrescenta, 500 anos de subjugação da população negra e indígena demandarão mais do que 20 anos de legislação para que a realidade seja transformada e, para isso, serão necessárias regulamentações que obriguem o cumprimento da lei.
Resposta da CNTE
Diante da ausência de ações do Ministério da Educação (MEC) para cobrar o cumprimento da medida, o Coletivo de Combate ao Racismo da CNTE definiu pela realização de seminários com entidades estaduais para mapear como está o cenário em todo o país.
O secretário de Combate ao Racismo da Confederação, Carlos Furtado, apontou que a entidade cobrará do ministério um posicionamento a respeito da lei, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) a realização de seminários de formação e irá ao Judiciário para efetivar esse direito.
“Vamos recomeçar a luta pela aplicação da Lei. Temos de provocar o MEC para de novo fomentar que a lei se faça presente nos currículos e livros didáticos. Da mesma forma, cobraremos a Secadi para que atue de modo a fazer da medida uma realidade e também das secretarias estaduais e municipais que têm se omitido sobre a medida. Se for o caso, em parcerias com nossas entidades de base, vamos judicializar esse debate e ingressar com ações para que nossa conquista seja preservada”, apontou.
O papel da sala de aula
Anatalina diz que o cumprimento da medida tem ocorrido a partir da militância dos trabalhadores/as da educação que também são ativistas antirracismo e tomam para si a responsabilidade de pensar uma proposta curricular de fato includente a partir das salas de aula.
Apesar de insuficiente e sem o apoio do Estado, pondera, a coragem de levantar o debate nas escolas é fundamental para formar pessoas comprometidas com o combate à discriminação.
“Todos/as que entendem que não há justiça sem igualdade racial e que não há democracia com racismo têm responsabilidade de se propor a mudar o mundo na sua sala de aula. E trabalhadores da educação são sujeitos fundamentais no processo de transformação da sociedade brasileira e na pactuação na luta antirracista”, acredita.